Surgimento dos Direitos Sexuais
Do ponto de vista histórico, foi após o término da segunda guerra mundial, no final da década de 40, que ganha força um movimento que propunha pensar como a humanidade poderia prevenir as atrocidades que foram cometidas em nome de ideologias veiculadas a sistemas políticos que produziram sofrimentos indescritíveis, graves sequelas, levando à morte de oito milhões de pessoas (judeus, ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência física). Então, surge um documento elaborado pela ONU, no ano de 1948, intitulado Declaração dos Direitos Humanos. Esta declaração insiste em defender direitos fundamentais para todos e quaisquer seres humanos: dá ênfase à importância do Estado em suas responsabilidades, defende a privacidade das pessoas, outorgando-lhes o direito de casar, formar família, educar filhos, ser respeitados na privacidade, expressar crenças e religiões, mas é omissa em relação à sexualidade. (PETCHESKY,1999).
Em 1993, a ONU revisa e reitera concepções introduzidas pela Declaração de 1948, no que ficou conhecida como a Declaração dos Direitos Humanos de Viena. Neste documento, dá destaque para a afirmação de que “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes inter-relacionados”.
Como aponta Rodrigues (2002), antes do ano de 1993, a sexualidade não aparece incluída nos discursos sobre direitos humanos em documentos multinacionais. A alusão à sexualidade vai parecer pela primeira vez na Declaração de Viena (1993) através de dispositivos que faziam alusão aos diretos das mulheres, rompendo com a característica até aí observada pelos discursos sobre direitos humanos, que interpretavam a vida sexual como inserida dentro do casamento heterossexual e para fins de reprodução.
Na declaração de Direitos Humanos de Viena foi incluída a “eliminação da violência baseada em gênero, de todas as formas de abuso e exploração sexual: o tráfico de mulheres, o estupro sistemático, a escravidão sexual e a gravidez forçada”. Este esquecimento não pode ser interpretado como mero acaso, visto que a sexualidade era, e ainda é, um assunto tabu cujas regras e normas não são apenas influenciadas pelo aceite das contribuições científicas e pelas reivindicações dos movimentos sociais organizados, naquelas sociedades regidas por princípios laicos. Muitas nações, principalmente no continente africano e no Oriente Médio, ainda mantêm normas e regras rígidas e até desumanas impostas por suas religiões em relação à sexualidade de homens e mulheres.
É a partir da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, em 1994, que gerou o Documento do Cairo, que a atividade sexual passa a ser designada como um aspecto positivo da sociedade humana. Na revisão final dos documentos, surge a inclusão da “saúde sexual” (cuja definição foi extraída do documento adotado pela OMS) na lista de direitos que devem ser protegidos e constar nos programas de desenvolvimento (PETCHESKY,1999). A definição da saúde sexual introduzida no documento chama a atenção para o fato de que “as pessoas têm o direito a uma vida sexual satisfatória e segura”, decidindo “se, quando e com que frequência desejam se reproduzir”. Entretanto, em nenhuma conferência da ONU, posterior a 1994, relativa a Direitos humanos, havia o reconhecimento da orientação sexual e da liberdade de expressão sexual. (RODRIGUES, 2002). Parece evidente que no cenário internacional ainda havia alguma resistência para que a orientação sexual e a liberdade de expressão sexual fossem consideradas como itens que deveriam fazer parte dos direitos humanos.
Novos avanços marcaram a Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, na China em 1995. Nela são ensaiados alguns indícios em direção aos Direitos Sexuais. Entre estes, destacam-se que: – as mulheres devem ter o direito de decisão acerca de questões relacionadas à sexualidade, direito à saúde sexual e reprodutiva, livre de coação, discriminação e violência; – os relacionamentos igualitários entre homens e mulheres, nas questões referentes às relações sexuais e à reprodução, requerem respeito mútuo, consentimento e responsabilidade sobre o comportamento sexual e suas consequências.
No XIII Congresso Mundial de Sexologia, realizado em Valência na Espanha em 1997, com a participação de delegados de sessenta países, foi aprovada a Declaração de Valência dos Direitos Sexuais, cujo tema era “Sexualidade e Direitos Sexuais”. Esta iniciativa demonstra como profissionais de diferentes formações que estão atuando e produzindo conhecimento na área da sexualidade humana, congregados na Associação Mundial de Sexologia –WAS (atual Associação Mundial para a Saúde Sexual), sentiram-se mobilizados para suprir uma lacuna nas declarações sobre direitos humanos, por não se deterem na afirmação dos direitos sexuais. Esta declaração foi aprovada na Assembleia Geral da WAS, no XIV Congresso Mundial de Sexologia em Hong Kong, em 1999.
É interessante registrar que muitas das conquistas no terreno da sexualidade obtidas para a população GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros [travestis e transexuais]) foram possíveis a partir da luta do movimento homossexual no início dos anos 70, primeiro na Europa e nos EUA. No Brasil a organização de grupos pela luta contra a discriminação, o preconceito pela igualdade de direitos começa na segunda metade os anos 70 (TREVISAN, 2000).
Declaração dos Direitos Sexuais
Antes de enunciarmos os artigos que compõem a Declaração dos Direitos Sexuais, é oportuno destacar algumas características fundamentais desta Declaração, que consistem em:
– deixar claro que a sexualidade deve ser referida como uma parte integral da personalidade de todo ser humano.
– destacar que todo ser humano, para seu desenvolvimento total, necessita da satisfação de algumas necessidades básicas: desejo de contato, intimidade, expressão emocional, prazer, carinho e amor.
– defender que o desenvolvimento da sexualidade é essencial para o bem estar individual, interpessoal e social, além de deixar claro, que ela se desenvolve na interação do indivíduo com as estruturas sociais;
– propagar que os direitos sexuais são direitos humanos universais, portanto que são direitos de toda e qualquer pessoa independente de sua orientação sexual e que a saúde sexual pode ser adquirida em um ambiente que reconhece, respeita e exercita estes direitos.
Quanto ao entendimento do que seja saúde sexual, a Declaração dos Direitos Sexuais apoia-se na seguinte definição:
“[…] a experiência do processo permanente de realização de bem-estar físico, psicológico e sociocultural relacionado à sexualidade”. A saúde sexual se verifica nas expressões livres e responsáveis das capacidades sexuais que proporcionam um bem-estar harmonioso pessoal e social, enriquecendo desta maneira a vida individual e social. Não se trata simplesmente da ausência de disfunção ou enfermidade ou de ambas. Para que a saúde sexual se realize é necessário que os direitos sexuais das pessoas sejam reconhecidos e garantidos “. (OPS/OSP/OMS, 2000, p.6).
A seguir, relacionaremos todo o conjunto dos direitos sexuais:
1 – O direito à liberdade sexual – A liberdade sexual diz respeito à possibilidade dos indivíduos em expressar seu potencial sexual. No entanto, aqui se excluem todas as formas de coerção, exploração e abuso, em qualquer época ou situação de vida.
2 – O direito à autonomia sexual, integridade sexual e à segurança do corpo sexual – Este direito envolve a habilidade de uma pessoa em tomar decisões autônomas sobre a própria vida sexual num contexto de ética pessoal e social. Também inclui o controle e o prazer de nossos corpos livres de tortura, mutilação e violência de qualquer tipo.
3 – O direito à privacidade sexual – O direito às decisões individuais e aos comportamentos sobre intimidades desde que não interfiram nos direitos sexuais dos outros.
4 – O direito à igualdade sexual – Oposição a todas as formas de discriminação, independente do sexo, gênero, orientação sexual, idade, raça, classe social, religião, deficiências mentais ou físicas.
5 – O direito ao prazer sexual – O prazer sexual, incluindo o auto-erotismo, é fonte de bem-estar físico, psicológico, intelectual e espiritual.
6 – O direito à expressão sexual – A expressão sexual é mais que um prazer erótico ou atos sexuais. Cada indivíduo tem o direito de expressar a sexualidade através da comunicação, toques, expressão emocional e amor.
7 – O direito à livre associação sexual – Significa a possibilidade de casamento ou não, ao divórcio e ao estabelecimento de outros tipos de associações sexuais responsáveis.
8 – O direito às escolhas reprodutivas livres e responsáveis – É o direito em decidir ter ou não ter filhos, o número e o espaçamento entre cada um, e o total acesso aos métodos de regulação da fertilidade.
9 – O direito à informação baseada no conhecimento científico – A informação sexual deve ser gerada através de investigação científica e ética, e disseminada em formas apropriadas e a todos os níveis sociais.
10 – O direito à educação sexual integral – Este é um processo que dura a vida toda, desde o nascimento, pela vida afora e deveria envolver todas as instituições sociais.
11 – O direito à saúde sexual – O cuidado com a saúde sexual deve estar disponível para a prevenção e tratamento de todos os problemas sexuais, preocupações e desordens.